3/09/2007

Do discurso da arte à ideologia do digestivo

Gênero Carta

Ainda tenho nas mãos a edição N° 02 da Revista “Entre Livros”, com uma imagem de Joyce segurando Ulisses. E desde o momento que a vi, senti que encontrei algo que procurava.

Numa época de consumo e culto à forma física, de avalanche de informações que sobrecarrega nosso discernimento, como a que vivemos hoje, é diminuta a proporção de atenção dada a qualquer tipo de arte. Ainda pior do que isto, outro fato está avesso; é chamada de arte toda e qualquer manifestação escultural, cênica, musical, e escrita que seja divulgada pelos veículos de comunicação, o que transtorna e distancia ainda mais as verdadeiras formas de arte, pois alienam sempre mais, e em muitos casos irreversivelmente, a população, impedindo-a de conhecer e ainda mais de produzir, o que ela é induzida a negar; a criação.

Na fase em que os jovens estão estudando no ensino fundamental e médio, quando eles poderiam/deveriam começar a desenvolver suas personalidades e gostos com mais ímpeto, eles são persuadidos a fazer e a saborear o que possui o gosto mais óbvio e a sensação mais imediata, sem que seja preciso pensar. A literatura é empurrada e entregue a eles como se fosse uma ferramenta para poderem conseguir uma vaga nas universidades, e somente isso. No entanto a brevidade da função do estudo dessa área é falsa.

São dadas como acontecimento literário mundial as escolas literárias brasileiras e portuguesas. Mas a maioria das inovações da arte (escrita inclusive) surgiu em outros países da Europa, não somente em Portugal, das outras Américas e da Ásia. Pouco é ensinado sobre o renascimento italiano e francês, que foram fortíssimos, tomando como exemplo o episódio da capela italiana Cistina, que foi repintada para esconder o nu da obra de Michelangelo, do simbolismo profundo de Baudelaire e de outros franceses, do ultra-romantismo alemão de Goethe e até da literatura filosófica de Voltaire, que é citado na disciplina “história” no período pré-revolução francesa, mas que nada se fala de seus escritos. É suprimido dos livros didáticos o espírito modernista e inovador francês que se projetou na arquitetura (Art nouveau), na pintura expressionista e numa fortíssima forma de arte, representada pelos cartazes publicitários que anunciavam revistas e peças de teatro, antecipando o “pub” das publicações de hoje.

A literatura é apresentada ao adolescente, que é o homem em sua fase mais eufórica, como uma chatice estática, levando-o a questionar os motivos de se estudar essa arte, pejorativa e indevidamente chamada de disciplina, fazendo-o crer, às vezes, estudar uma complicação mórbida e inútil.

A revista é um rumo a quem queira se aprofundar mais na literatura, um estímulo a quem queira conhecê-la e um incentivo a quem não acha vida nesta velha e profunda amiga.

É lindo ver colocada a literatura universal ao alcance de mais camadas da sociedade, através da visão panorâmica literária e da direção da leitura que dará rumos a quem queira começar ou continuar nesse universo.

Os artistas defendem a arte como a si mesmos. Já no âmbito da importância da literatura, o seu objetivo não é só entreter e fazer com que os seres humanos passem momentos agradáveis, perdidos na irrealidade, eximidos do inferno doméstico ou da ansiedade econômica, em espontânea indolência intelectual, as ficções da literatura não podem competir com as oferecidas pelas telas de cinema ou tevê. As conexões edificadas com a palavra exigem a participação ativa do leitor, um esforço mental, de sua imaginação e, às vezes, quando se trata da literatura moderna, exigem dificultosas operações de memória, associações e recriações, algo de que as imagens do cinema e da tevê prescindem os espectadores. E, por isso, os espectadores se tornam cada vez mais preguiçosos, mais alérgicos a qualquer que necessite de esforço do intelecto.

Em depoimento magnífico, o peruano Mário Vargas Llosa insiste no valor da literatura em comparação com outras atividades: "As ficções apresentadas nas telas são intensas por seu imediatismo e efêmeras por seus resultados. Prendem-nos e nos liberam quase de imediato. Das ficções literárias, nos tornamos prisioneiros da vida toda, porque o resultado de uma boa literatura é sempre posterior à leitura - um efeito deflagrado na memória e no tempo.".

O interessante é valorizar a arte, mas conhecê-la primeiramente, a torna ainda mais atraente.

Aqui no Brasil, até o início da década de 60, a leitura de obras literárias era considerada uma obrigação regular por parte de docentes e discentes, não havendo quem questionasse o sentido do ato de ler. O que deve ser lembrado, é que no Brasil, o livro exercia desde o século XIX diferentes funções, claro que para os grupos sociais privilegiados: era o lazer perfeito; era uma insubstituível fonte de conhecimento humano; era o reflexo do país, na qual a minúscula elite cultural se enxergava; era o modelo superior de correção das formas e elegância do idioma pátrio.

Nesta mesma década, houve uma grande universalização e democratização do ensino, que permitiu o acesso de outras classes ao saber, e não comente das privilegiadas. Estes novos personagens sociais, no entanto, vinham de um mundo sem livros e com fracas referências culturais. E antes que a tradição da leitura se enraizasse às suas existências, foram chamados para a poderosa indústria cultural que se implementava na mesma época. Tal indústria, focada na tevê e na música dos discos, conquistou imediatamente notáveis parcelas da população “recém-alfabetizada”. As necessidades de entretenimento e informações, foram recheadas por estes meios audiovisuais. E a leitura foi derrotada na batalha da audiência, transformando-se em espécie de atividade refinada de pequena parte cultural e saudosista da população.

Até as elites, acabaram deixando em partes o seu antigo parceiro, que lhes oferecia um céu de imagens e de visões universais, comercializando-o por uma sub-arte mastigada e facilitada, produzida pelos meios de comunicação de massa.

Para se desafogar, a literatura tornou-se dietética. Sem responsabilidades, roteirizada, e imbecil.


Desculpe pelo desabafo, acho que tudo o que disse vocês já sabiam, mas o que pretendia era elogiá-los e parabenizá-los, pois como eu disse no começo desta carta, com sua revista eu encontrei o que procurava, já que meu trabalho de conclusão de curso do passado foi uma revista chamada “Proscritos & Polêmicos”, sobre a arte maldita, tendo Oscar Wilde como escritor da edição número 0.


Grato pelo trabalho

3/08/2007

Lá do fundo da gaveta vêm as teias, mas já sem as aranhas...

Gênero Poesia
Pedra dos Tempos

Tempo!
Nessa chuva de desafetos,
Dissolvem-se belezas,
as vãs alegrias
pois o belo por essência
é em pedra esculpido
não em barro moldado!

“A essência perfuma a flor
pois as aparências
se perdem
com a chuva
do tempo...”

Numa noite sem medos
Joguei uma pedra na vidraça...
Quebrei meu reflexo!
E ainda refletia...
Mil de mim
em mil partes dela
(mostrei quem era mais duro...)
Intacto,
Eu mudei o mundo!


Alex Wild
26/10/2001

3/06/2007

O Deus e a Ninfa

Gênero Conto

Disse o deus em depoimento a si mesmo ao observar o passar do tempo:
- Agora mesmo escureci o dia lá fora.
Fechei os céus. Entristeci as nuvens. Mesmo o mirmidão mais valente e impetuoso hesitaria em sair por alguma porta.
- O fato de ser um deus me garante o direito de ser vingativo. Não estou conseguindo sê-lo. O que eu admiro nos homens é sua capacidade de regeneração. De mudar as coisas. Mudar suas idéias. Eles também se vingam, como nós mesmos fazemos. Neste sentido eu sou menos que um massificado humano. Não consigo me vingar.

Quanto a sofrer:
- O sofrimento lhes foi dado como presente constante e eles se apaixonam sempre, alguns deles nem isso conseguem. O deus do caminho do meio se enxerga sem discípulos nesses últimos milhares de anos.

Observando a mudança dos ventos:
- A noite vem chegando com inexorável força diária. Um golpe dado com muita força pode ser fatal contra quem ele é desferido. Mas como toda grande onda ou fria avalanche, pode também ser manipulado. Nós manipulamos. Os homens também manipulam. E ambos são enganados. A noite vem construindo a solidão dos angustiados. A noite é uma avalanche. Vou terminar este dia com uma escuridão vazia. Assim amanhã será completamente o amanhã. E lá poderei inventar novos caminhos, fechando velhas entradas e abrindo novas saídas.

Quanto à ousadia:
- Os deuses também são importunados. Ousada ninfa quem impede a minha construção da agonia. Eu devo ter sido enfeitiçado. Provoco grandes trovoadas para distrair minha atenção. Esse objetivo, que é a causa do escurecer dos dias, é parte de uma jogada apenas. Essa sutil e tão óbvia cartada é também irresistível. Ela me direciona seus lábios e profere palavras com suavidade, mas que é ouvida mais longe que os trovões. Esse é o tom do encantamento. Esse fascínio a que nem mesmo os deuses ou anjos estão protegidos, é grande causa de sofrimentos.

O escurecer do dia:
- Estou dando forças para o carrasco, mas quem pode enforcar um deus? Aquilo que protegi descaradamente, que me fez ser julgado por outros deuses e homens por proteger, irracionalmente e imparcialmente, uma ninfa, está a infantilizar meus relâmpagos, a sutilizar meus trovões. Quando abandonarei esta ninfa-estaca que se enfia no meu coração? Quanto mais eu a agarro, mais a prendo em mim, infinitamente ela me corrói, até escurecer minha visão.

Voz narrando:
Neste mesmo instante, escuta-se um ranger de portas. Passos se direcionam para o ambiente desse deus apático. É a ninfa a quem ele tanto buscou e protegeu. Ela não é tão alta. Não é tão séria. Não é tão rósea. Ela olhou o deus de frente, entregou-se a ele, o criador das tempestades. Ele com seus olhos divididos entre chuvas e lágrimas, seus lábios entre o beijo e o espanto, se enxergou como um homem, e como tal se jogou nos braços da ninfa.
Lá fora começou a se ouvir o cantar dos pássaros. O abrir das flores. A brisa quente entrava pelas frestas de todas as casas e nenhum sábio soube explicar o nascer do dia durante a escuridão da noite. Talvez fosse uma resposta ao escurecer da noite sobre a luz do dia... Os mirmidões souberam transformar a fraqueza da luz em força da sombra, entraram no castelo de seu inimigo, pela porta da frente. O dia veio intenso em seu calor devido à longa espera pelo fim das horas nebulosas.
Então ao alto das nuvens, agora claras como pétalas de lótus que saem sempre cândidas da lama, se reuniram, já cansados de suas próprias existências, outros deuses e criaturas divinas. Todos condenavam o que estavam assistindo. O mais moralista e católico dos homens não teria percebido que todos ali eram divindades, e teria se esquecido que estava acima das nuvens, de tão grande hipocrisia que o ambiente exalava.
Caído em cima de milhões de gotículas de água e vapores, que vistas de longe são parecidas com as nuvens, estava aquele deus entristecido, agarrado ao seu objeto de valor; uma grande rosa repleta de espinhos, e o maior e mais venenoso deles, enfincado em seu peito desprotegido, ambos sem vida; o deus e a rosa.

Alex Wild
Escrito em 2004
Amaral Gurgel - centro de São Paulo.