3/06/2007

O Deus e a Ninfa

Gênero Conto

Disse o deus em depoimento a si mesmo ao observar o passar do tempo:
- Agora mesmo escureci o dia lá fora.
Fechei os céus. Entristeci as nuvens. Mesmo o mirmidão mais valente e impetuoso hesitaria em sair por alguma porta.
- O fato de ser um deus me garante o direito de ser vingativo. Não estou conseguindo sê-lo. O que eu admiro nos homens é sua capacidade de regeneração. De mudar as coisas. Mudar suas idéias. Eles também se vingam, como nós mesmos fazemos. Neste sentido eu sou menos que um massificado humano. Não consigo me vingar.

Quanto a sofrer:
- O sofrimento lhes foi dado como presente constante e eles se apaixonam sempre, alguns deles nem isso conseguem. O deus do caminho do meio se enxerga sem discípulos nesses últimos milhares de anos.

Observando a mudança dos ventos:
- A noite vem chegando com inexorável força diária. Um golpe dado com muita força pode ser fatal contra quem ele é desferido. Mas como toda grande onda ou fria avalanche, pode também ser manipulado. Nós manipulamos. Os homens também manipulam. E ambos são enganados. A noite vem construindo a solidão dos angustiados. A noite é uma avalanche. Vou terminar este dia com uma escuridão vazia. Assim amanhã será completamente o amanhã. E lá poderei inventar novos caminhos, fechando velhas entradas e abrindo novas saídas.

Quanto à ousadia:
- Os deuses também são importunados. Ousada ninfa quem impede a minha construção da agonia. Eu devo ter sido enfeitiçado. Provoco grandes trovoadas para distrair minha atenção. Esse objetivo, que é a causa do escurecer dos dias, é parte de uma jogada apenas. Essa sutil e tão óbvia cartada é também irresistível. Ela me direciona seus lábios e profere palavras com suavidade, mas que é ouvida mais longe que os trovões. Esse é o tom do encantamento. Esse fascínio a que nem mesmo os deuses ou anjos estão protegidos, é grande causa de sofrimentos.

O escurecer do dia:
- Estou dando forças para o carrasco, mas quem pode enforcar um deus? Aquilo que protegi descaradamente, que me fez ser julgado por outros deuses e homens por proteger, irracionalmente e imparcialmente, uma ninfa, está a infantilizar meus relâmpagos, a sutilizar meus trovões. Quando abandonarei esta ninfa-estaca que se enfia no meu coração? Quanto mais eu a agarro, mais a prendo em mim, infinitamente ela me corrói, até escurecer minha visão.

Voz narrando:
Neste mesmo instante, escuta-se um ranger de portas. Passos se direcionam para o ambiente desse deus apático. É a ninfa a quem ele tanto buscou e protegeu. Ela não é tão alta. Não é tão séria. Não é tão rósea. Ela olhou o deus de frente, entregou-se a ele, o criador das tempestades. Ele com seus olhos divididos entre chuvas e lágrimas, seus lábios entre o beijo e o espanto, se enxergou como um homem, e como tal se jogou nos braços da ninfa.
Lá fora começou a se ouvir o cantar dos pássaros. O abrir das flores. A brisa quente entrava pelas frestas de todas as casas e nenhum sábio soube explicar o nascer do dia durante a escuridão da noite. Talvez fosse uma resposta ao escurecer da noite sobre a luz do dia... Os mirmidões souberam transformar a fraqueza da luz em força da sombra, entraram no castelo de seu inimigo, pela porta da frente. O dia veio intenso em seu calor devido à longa espera pelo fim das horas nebulosas.
Então ao alto das nuvens, agora claras como pétalas de lótus que saem sempre cândidas da lama, se reuniram, já cansados de suas próprias existências, outros deuses e criaturas divinas. Todos condenavam o que estavam assistindo. O mais moralista e católico dos homens não teria percebido que todos ali eram divindades, e teria se esquecido que estava acima das nuvens, de tão grande hipocrisia que o ambiente exalava.
Caído em cima de milhões de gotículas de água e vapores, que vistas de longe são parecidas com as nuvens, estava aquele deus entristecido, agarrado ao seu objeto de valor; uma grande rosa repleta de espinhos, e o maior e mais venenoso deles, enfincado em seu peito desprotegido, ambos sem vida; o deus e a rosa.

Alex Wild
Escrito em 2004
Amaral Gurgel - centro de São Paulo.

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